Socialismo e Religião – Anton Pannekoek (1907)

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Socialismo e Religião – Anton Pannekoek (1907)

Socialism and Religion. International Socialist Review, July 1906-june 1907. Tradução: Ernest Untermann. Disponível em: https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=hvd.32044100886530;view=1up;seq=588 Acesso em 5 de dezembro de 2018. Tradução: CHBC e JCM.

I

Se tentarmos encontrar uma explicação para a relação mútua entre socialismo e religião na atitude prática de porta-vozes religiosos e nos discursos e escritos de socialistas, acreditaremos facilmente que, neste aspecto, predominam um grande mal-entendido, confusão e contradições internas.

De um lado vemos que muitos trabalhadores, quando se juntam às fileiras socialistas, também descartam qualquer fé teológica que possuam e frequentemente combatem a religião ferozmente; ademais, o conjunto dos princípios que constituem a base e a força do socialismo atual, e juntos formam uma concepção de mundo inteiramente nova, permanecem opostos à fé religiosa de forma irreconciliável. De outro lado, vemos adeptos fiéis do cristianismo, até padres, reivindicando o socialismo precisamente por conta de seus princípios cristãos e se reunindo sob a insígnia do movimento operário. E, o que é ainda mais significante, todos os agitadores e todos os programas de partidos socialistas internacionais declaram de forma unânime que a religião é um assunto de foro íntimo dos indivíduos, no qual os demais não devem interferir.

Apesar disso, muitos padres e representantes oficiais das religiões combatem a social-democracia com muito zelo. [1] Eles argumentam que este movimento visa meramente exterminar a fé, martelam ardilosamente sobre as teses de nossos maiores expoentes (Marx, Engels, Dietzgen) que fazem apontamentos críticos sobre a religião e defendem seu próprio materialismo enquanto teoria científica.

Mais uma vez, camaradas em nossas próprias fileiras se opõem à divulgação de tais teses sob o argumento de que o programa do partido declarou a neutralidade para com a religião e prefeririam proibir a propagação das teses materialistas, que ferem os sentimentos de pessoas religiosas. Eles dizem que o objetivo de nosso movimento socialista é puramente econômico. A esse respeito estão corretos e não devemos falhar em repetir isso diversas vezes em refutação às mentiras dos pastores.

Não desejamos inocular pessoas com uma nova fé, ou um ateísmo, mas sim desejamos provocar uma transformação econômica da sociedade. Desejamos substituir a produção capitalista pela socialista. Qualquer um pode perceber a viabilidade prática de tal produção coletiva e suas vantagens sobre a exploração capitalista, por razões que nada têm a ver com religião. Para esse fim queremos garantir o poder político da classe proletária, já que é indispensável enquanto meio para esse objetivo. A necessidade, ou ao menos o anseio, dessa transferência do poder político pode ser compreendida por qualquer trabalhador a partir de sua experiência política, sem qualquer cerimônia, independentemente de ser, em matéria de fé, um protestante, um católico, um judeu, ou um livre-pensador sem qualquer religião. Assim, nossa propaganda deve se dedicar exclusivamente a elucidar as vantagens econômicas do socialismo e tudo que possa contrariar os preconceitos das mentes religiosas deve ser evitado.

Por mais óbvia que tal concepção possa ser, ao menos em sua primeira parte, ainda possui seus inconvenientes, e serão poucos os que concordarão com a última conclusão. Se estivesse correta, e se fosse nosso objetivo pregar as belezas do socialismo a todas as pessoas, então naturalmente deveríamos nos dirigir a todas as classes sociais, e em primeiro lugar às mais educadas. Mas a história do socialismo rejeitou por completo os utópicos sentimentalistas, que queriam fazer isso. Descobriu-se que as classes possuidoras não se importam com tais vantagens e que somente a classe proletária se tornou cada vez mais aberta a essa compreensão. Isso indica, por si só, que algo mais deve ser considerado do que meramente provar às pessoas a viabilidade prática de uma transformação econômica da sociedade. Tal transformação, e seu instrumento, a conquista dos poderes políticos pela classe operária, só pode ser o resultado de uma grande luta de classes. Mas para conduzir com sucesso essa luta de classes a sua conclusão é necessário organizar toda a classe operária, para despertar sua inteligência política, para dotá-la de um completo entendimento das forças internas que movem o mundo. Além disso, é necessário se familiarizar com a força e a fraqueza dos adversários da classe operária, de modo a fazer o melhor uso deles e para ser capaz de refutar suas influências de maneira enérgica, as quais podem debilitar a força interna e externa do exército organizado de proletários. Somente uma compreensão clara de todos os fenômenos políticos e sociais pode prevenir os atuais líderes e membros do movimento socialista de erros e passos em falso, que podem prejudicar seriamente a propaganda entre as massas ainda ignorantes. Apenas conhecimento profundo os capacitará para arrancar novas concessões de seus inimigos por suas táticas e beneficiar o proletariado.

Se isso é um fato, que a maior quantidade de conhecimento e compreensão é exigida em nossas fileiras para o propósito de bem promover nossa luta, e se os escritos materialistas de nossos mentores tendem a aumentar tal inteligência, então envolveria grandes desvantagens tentar esconder e suprimir tais escritos e concepções apenas em razão de evitar um choque com os preconceitos das pessoas de saber limitado.

Nossa teoria, a ciência socialista fundada por Marx e Engels, foi a primeira a nos fornecer nítidos vislumbres das diferentes inter-relações sociais, que influenciam nosso movimento. Portanto, para nós será necessário retornar a essa ciência para uma resposta satisfatória à questão da relação entre socialismo e religião.

II

Se desejamos decidir sobre nossa atitude quanto à religião, primeiramente será necessário à nossa ciência nos esclarecer a origem, a natureza e o futuro da religião. Tal esclarecimento, como em toda ciência, deve ser baseado em experiência e fatos. Atualmente percebemos que, em todos os países com um movimento socialista fortemente desenvolvido, o conjunto dos proletários com consciência de classe não possui religião, ou seja, eles não acreditam em nenhuma doutrina religiosa e não aderem a nenhuma delas. Isso parece, à primeira vista, ainda mais peculiar, já que essa multidão geralmente possui baixa escolaridade. De outro lado, as classes “educadas”, ou seja, a burguesia, retornam cada vez mais à fé, ainda que tenha existido entre elas um forte movimento antirreligioso. Parece, então, que crença ou descrença não são primordialmente um resultado de cultura, nível de conhecimento e esclarecimento. Os proletários socialistas são os primeiros entre os quais a irreligiosidade aparece como fenômeno de massa. Deve haver uma causa definida para isso, e se não se comprovar um fato meramente transitório, deve necessariamente resultar em uma restrição cada vez maior do campo da religião pelo socialismo.

Já os partidários da religião frequentemente argumentam não ser o caso, pois segundo eles, a religião é algo maior do que uma mera fé teológica. A devoção a um ideal, a disposição de fazer sacrifícios por uma causa maior, a fé na vitória final do Bem – tudo isso dizem também significar religião. Nesse sentido o movimento socialista deve até ser chamado de profundamente religioso. É claro que não discutiremos minúcias sobre palavras. Diremos simplesmente que tal significado do termo religião não é o mais costumeiro. Sabemos muito bem que o proletariado socialista está repleto de grande e elevado idealismo, mas para eles isso não está associado a uma crença em um poder sobrenatural, que se supõe governar o mundo e guiar os destinos dos humanos. Nós utilizamos o termo religião apenas nesse último sentido, qual seja, enquanto crença em um deus.

Agora nos permita perguntar de onde vem essa fé e o que significa. É óbvio que a fé em um poder sobrenatural que governa os humanos e o mundo, pode existir apenas na medida em que as forças que realmente controlam os processos na natureza e no homem sejam desconhecidas. Um Cafre, [2] trabalhando como carregador de bagagens em uma estação de trem da África do Sul e que subitamente escuta o telégrafo começar a emitir sinais, acredita haver um deus oculto ali dentro. Ele se curva profundamente perante o aparelho e diz respeitosamente: “Informarei o chefe imediatamente” (o operador de telégrafo). Essa concepção do homem sem instrução é bastante inteligível, assim como o fato de que os povos primitivos acreditavam que a natureza ao seu redor estava repleta de todo tipo de espíritos misteriosos. Em sua economia eles dependiam inteiramente da natureza. Muitas forças naturais e poderes desconhecidos ameaçavam seus trabalhos, enquanto outras lhes eram favoráveis, úteis, benéficas. Eles não possuíam nenhum meio de conhecimento ou controle sobre tais poderes. Esses lhes pareciam sobrenaturais, antropomórficos, forças com vontades próprias, e eles pretendiam influenciá-los com os meios de seus limitados horizontes mentais: preces, sacrifícios, ou, talvez, ameaças. O pouco conhecimento geral requerido por suas economias está intimamente conectado com suas concepções religiosas. Os sacerdotes devem sua grande influência precisamente ao fato de que são os portadores do conhecimento transmitido por tradição, de modo que são os mentores intelectuais da produção. Assim como em suas concepções de forças da natureza o conhecimento empírico elementar e precário é misturado com superstição fantástica, suas cerimônias religiosas formam uma mescla de ações necessárias à produção e ações completamente supersticiosas e inúteis.

Povos civilizados já não são tão esmagadoramente influenciados pelas forças da natureza. Embora não signifique dizer que eram compreendidas cientificamente no início da civilização, os indivíduos já estão mais fora do alcance de sua influência direta. Seus métodos de produção e de trabalho tornaram-se tão desenvolvidos que as pessoas se sentem mais independentes dos eventos naturais e não estão tão desamparadas diante deles como os selvagens. Quando chegamos a um estágio posterior da civilização, à era do capitalismo, nos deparamos com um rápido desenvolvimento das ciências naturais, que investigam as forças e efeitos da natureza de forma sistemática e descobre seus segredos. Pela aplicação técnica dessas ciências, as forças da natureza inclusive estão a serviço da produção das necessidades da vida. Então, para o homem civilizado moderno, a natureza deixou de ter poderes misteriosos, que poderiam induzi-lo a acreditar em forças sobrenaturais. Tais espíritos do passado estão domesticados e colocados a seu serviço enquanto forças comuns da natureza, cujas leis e processos lhe são conhecidos.

Mesmo assim constatamos que a classe que incorpora essa cultura e essa supremacia sobre a natureza permaneceu, ou tornou-se novamente, religiosa em sua maioria, com exceção de uma forte corrente temporária de materialismo burguês no século dezenove. Por que isso? Que razão eles têm para presumir a existência de uma regência sobrenatural dos destinos da humanidade? Em outras palavras, que forças existem que ainda afetam drasticamente a existência da burguesia e que permanecem desconhecidas em suas origens e naturezas e, portanto, podem ser consideradas forças misteriosas e sobrenaturais? Tais forças derivam da ordem social. De fato, o provérbio diz que “cada um é o capitão de sua própria alma”, mas na prática a maioria dos capitalistas pensa que isso não é verdade.

Enquanto produtor independente, o capitalista pode fazer o seu melhor, ele pode cuidar de seu negócio de forma consciente e prudente, ele pode explorar completamente seus empregados sem nenhum sentimentalismo, ele pode manter seus gastos dentro de um limite apropriado, e não obstante os preços podem cair até que ele tenha que vender quase sem nenhum lucro, ou mesmo com prejuízo, e apesar de seus esforços o monstro diabólico da falência recai sobre ele. Ou seu negócio pode estar indo bem e ele pode estar acumulando dinheiro a ótimas taxas, quando subitamente uma crise o surpreende e engole todo o seu empreendimento. Por que isso acontece? Ele não sabe. Falta-lhe o conhecimento de economia política, que poderia esclarecê-lo sobre o fato de que o capitalismo necessariamente deve produzir tais forças sociais grandiosas que podem elevar o indivíduo à alta prosperidade, se ele for sortudo, mas que também pode destruí-lo. A origem dessas forças deve ser buscada no fato de que a produção é realmente social, mas apenas na forma e aparência a produção depende da iniciativa e controle privados. As fantasias individuais são de que ele trabalha de forma independente, mas ele precisa permutar seus produtos com outros e as condições de troca, preços e a possibilidades de permuta como um todo são decididas pela totalidade das condições sociais. A produção não é regulada conscientemente pela sociedade. Seu caráter social está acima da vontade da humanidade, tal qual as forças da natureza, e por essa razão leis sociais defrontam o indivíduo com a inevitabilidade e a cruel inexorabilidade das forças naturais. As leis dessa natureza artificial, de seu processo produtivo, são desconhecidas para ele, e por essa razão ele permanece diante delas da mesma forma que os selvagens diante das leis da natureza. Elas trazem destruição e miséria de muitas formas, ocasionalmente também trazem fortuna. Elas governam seu destino caprichosamente, mas ele não as conhece nem as compreende.

O proletariado socialista se posiciona diante dessas forças com uma atitude diferente. É precisamente sua condição oprimida que o despoja de qualquer interesse de preservação do capitalismo e de encobrimento da verdade sobre esse sistema. Assim o proletariado é habilitado a estudar suficientemente o capitalismo, ele é compelido a se tornar completamente familiarizado com seu inimigo. Essa é a razão pela qual a análise científica do capitalismo fornecida em “O Capital”, que é a obra da vida de Karl Marx, encontrou relutância e pouca compreensão por parte dos cientistas burgueses, mas foi saudada com entusiástico apreço pelo proletariado, que encontrou nesse trabalho uma revelação das causas de sua pobreza. Por tais ensinamentos lhes é possível entender toda a história do modo de produção capitalista. Eles se tornam cientes dos motivos pelos quais, inevitavelmente, o fracasso deve ser o destino de inúmeros pequenos burgueses e por que fomes, guerras e sofrimentos causados pelas crises decorrem necessariamente dessa produção. Mas eles também enxergam de que maneira o capitalismo se arruinará por suas próprias leis. A classe proletária compreende por que, por meio de seu discernimento e conhecimento, será capaz de substituir o capitalismo por uma produção social conscientemente regulada, na qual nenhuma força misteriosa poderá mais trazer destruição à humanidade. Portanto, a parcela socialista da classe proletária se coloca diante das forças sociais tão inteligente e compreensivamente quanto o educado burguês diante das forças da natureza.

Aqui reside a causa da irreligiosidade do moderno proletariado socialista com consciência de classe. Não resulta de nenhuma propaganda anticlerical intencional. Nem de reinvindicação de algum programa. Surge gradualmente como consequência do profundo discernimento social que o proletariado adquire por instrução no campo da economia política. O proletário não se separa de sua fé por nenhuma doutrina materialista, mas sim pelo ensinamento que o capacita a enxergar clara e racionalmente as condições da sociedade, e na medida em que ele compreende o fato de que forças sociais são efeitos naturais de causas conhecidas, a velha fé em milagres morre dentro dele.

III

Para entender a natureza da religião por completo – e somente um entendimento completo nos capacitará a captar seus efeitos na presente sociedade – devemos chegar a uma concepção clara da natureza de coisas subjetivas em geral. É a este respeito que os escritos filosóficos de Josef Dietzgen são tão valiosos, porque nos dão clareza sobre a natureza da mente, dos pensamentos humanos, teorias, doutrinas, sobre as ideias em geral. Apenas desse modo compreendemos por completo nosso papel na vida social e na luta atual. O que quer que esteja na mente reflete o mundo exterior a nós. Surgiu desse mundo. Nossa concepção de coisas verdadeiras e reais deriva da nossa experiência no mundo, nossa concepção de coisas boas e sagradas das nossas necessidades. Mas essas reflexões mentais não são meras imagens refletidas que reproduzem os objetos exatamente como são enquanto a mente exerce um papel puramente passivo. Não, a mente transforma tudo o que assimila. Além de impressões e sentimentos, sobre os quais o mundo material exerce influência, ela produz conceitos e hipóteses mentais. Dietzgen explicou que a diferença entre mundo e mente, original e cópia, é a de que o fluxo dos fenômenos – infinitamente diverso, concreto e em constante mudança em que a realidade consiste – é transformado pela mente em conceitos abstratos, fixos, imutáveis, rígidos. Nessas concepções os fatos gerais, permanentes, importantes e proeminentes são destacados do quadro multicolorido dos fenômenos e nomeados enquanto natureza das coisas. Da mesma maneira subjetivamos com os termos bom, moral, sagrado, aquelas – dentre as muitas coisas e instituições necessárias para nosso bem-estar – que são essenciais para a satisfação das nossas necessidades gerais, permanentes e vitais.

Embora derivados da realidade, é inerente à natureza desses conceitos e hipóteses mentais que não consigam acompanhá-la em suas incessantes alterações. Uma vez que algo foi colhido da experiência enquanto cópia mental, fixa-se na mente e permanece lá entronado como uma verdade reconhecida, enquanto novas experiências estão se acumulando na mente, com a qual essa verdade não pode mais ser conciliada. A princípio essa verdade resiste, mas gradualmente tem que se submeter à mudança, até que finalmente, quando os novos fatos se acumularam de forma esmagadora, ela é derrubada ou completamente compreendida e alterada. Essa é a história de todas as teorias científicas. O lugar da antiga é tomado por uma nova teoria, a qual, então, fornece uma sumarização abstrata e sistemática a toda reserva de fatos materiais.

Não estamos tão interessados aqui em teorias científicas como nas concepções gerais referentes à natureza do mundo e ao lugar do homem nele, que são incorporadas pelas filosofias e religiões. Essas não são teorias abstraídas de experimentos e observações especiais de sábios exploradores. Os fatos sobre os quais são construídas são primordialmente experiências e sentimentos de nações inteiras ou de classes populares. Elas formam suas ideias e concepções gerais pelas suas experiências relativas à sua própria posição na natureza e meio social, particularmente em relação às necessidades de suas vidas. Sempre que poderosas forças desconhecidas as pressionem – como mencionamos antes – sua concepção do mundo é dominada por forças sobrenaturais e outras concepções são adicionadas a esse pensamento fundamental. Até agora foi o caso em quase toda a história, salvo poucas exceções. Assim, encontramos nas doutrinas religiosas as concepções gerais primitivas relativas à natureza do mundo e das relações do homem com aquelas forças desconhecidas expressas em formas mistificadas. Todo o necessário para a manutenção dos interesses dessa classe de pessoas assume, então, a forma de uma lei divina. Quando toda esperança de melhora pela autoafirmação se esvai, como ocorreu entre os proletários romanos arruinados dos primeiros séculos do cristianismo, é que o sofrimento dócil sem resistência e a inerte espera pela salvação sobrenatural se tornam a mais alta virtude. Mas quando uma preparação enérgica para a guerra é requerida para a manutenção de um território conquistado e é concluída com sucesso, como foi entre os judeus do Antigo Testamento, daí Jeová ajuda seu povo escolhido e aqueles que obedecem às suas leis a lutar bravamente. Na grande luta de classes da Europa, chamada de Reforma, cada uma das classes envolvidas na luta considerava como vontade de Deus tudo o que estivesse de acordo com seus interesses de classe, pois cada uma só poderia conceber aquilo que era vital para a existência de sua classe enquanto absolutamente bom e necessário. Para os seguidores de Lutero, que amavam servir a um príncipe, a lei de Deus ou a verdade de Deus, exigia obediência à autoridade; para a burguesia livre das cidades exigia igualdade Calvinista de indivíduos e seleção pela graça; para os camponeses e proletários rebeldes exigia a igualdade comunista de toda a humanidade. De modo geral, as religiões em luta daquele período podem ser comparadas aos partidos políticos dos dias atuais. Os membros de uma mesma classe se reuniam, e em seus congressos (concílios) formulavam sob forma de confissões de fé (hoje em dia diríamos programas) suas concepções gerais do que eles entendiam por verdadeiro, bom e necessário, e o que era, portanto, a verdade e a vontade de Deus. Naqueles dias a religião era algo vivo, profunda e intimamente conectado com toda a vida e, por essa razão, ocorria frequentemente de as pessoas mudarem suas religiões. Quando uma mudança de religião é considerada meramente um tipo de violação de costumes, como em nossos dias atuais, é um indício de que a religião permanece intocada pelos grandes movimentos sociais modernos, pelas lutas que estimulam a humanidade, e torna-se uma mera casca morta.

Com o desenvolvimento da sociedade surgiram novas classes e novos antagonismos de classe. Do interior das coletividades de fiéis existentes outrora resultaram diferentes classes e antagonismos cresceram. Do mesmo estrato dos pequenos burgueses, surgiram grandes capitalistas e proletários. A confissão de fé, que antigamente expressava uma convicção social viva sob vestimenta teológica, torna-se uma fórmula rígida. A coletividade de fiéis, antigamente uma comunidade de interesses, torna-se algo fossilizado. As concepções mentais persistem por tradição enquanto formas teológicas abstratas, desde que não sejam abaladas pela forte tempestade de uma nova luta de classes.

Quando chega essa nova luta de classes, encontra os velhos antagonismos tradicionais em seu caminho, e então começa a batalha entre a fé tradicional e a nova realidade. Os reais interesses de classe atuais são idênticos para os proletários de diferentes confissões religiosas, enquanto um profundo antagonismo de classe existe entre proletários e capitalistas de mesma denominação religiosa. Mas a nova realidade exige a superação de velhas tradições. Em uma época em que uma comunidade religiosa representava uma comunidade viva de interesses, a associação de membros da mesma fé foi transmitida por tradição, e uma tradição sagrada. Pelo fato de que dessa associação é a imagem mental de uma realidade passada, ainda persiste enquanto fato subjetivo e tenta se manter contra a investida de novos fatos, que influenciam a mente do proletário por sua própria experiência e pela propaganda socialista. No fim, o velho conjunto de concepções e interesses, que se tornaram casca morta, deve ceder ao novo conjunto baseado em interesses de classe contemporâneos.

Portanto, religião é apenas um obstáculo temporário para o avanço do socialismo. Em virtude da sacralidade atrelada às suas doutrinas e mandamentos consegue se manter por mais tempo e mais tenazmente do que outras concepções burguesas. Por vezes, tal tenacidade criou a impressão de que a fidelidade do proletariado religioso seria um obstáculo ao socialismo na prática e uma refutação ao socialismo teórico. Mas em longo prazo até mesmo essa ideologia sucumbe ao poder da realidade, como provou o proletariado católico na Alemanha.

IV

Os ensinamentos socialistas inocularam o proletariado com uma concepção de mundo inteiramente nova. A percepção de que a sociedade está em contínuo processo de transformação, e que miséria, pobreza, exploração e todo o sofrimento do presente são temporários e em breve darão lugar para um tipo de sociedade – a ser inaugurada por sua classe – na qual paz, abundância e fraternidade reinarão. Tal percepção revolucionará completamente a concepção de mundo do proletário. A teoria do socialismo fornece os fundamentos científicos para essa concepção de mundo. A economia política nos ensina a entender as leis internas que movem o processo capitalista, enquanto o materialismo histórico revela os efeitos da revolução econômica sobre as concepções e ações das pessoas. Enquanto sistema teórico materialista, tudo isso permanece irreconciliavelmente oposto à religião. O proletário socialista que reconheceu seus interesses de classe e dessa forma se inspirou com entusiasmo pelo grande objetivo da luta de sua classe, desejará naturalmente ter um claro entendimento dos fundamentos científicos de suas ações práticas. Para este fim, se informa com as teorias materialistas do socialismo. Mas não é meramente almejando a satisfação derivada de um entendimento completo que é necessário que os partidos socialistas promovam uma compreensão minuciosa desses ensinamentos entre seus membros. É necessário, primordialmente, porque tal compreensão é indispensável para um impulso vigoroso em nossa luta.

Assim, o estado de coisas atual é justamente o oposto do que os teólogos acreditam e proclamam. Nossas teorias materialistas não servem para privar os proletários de suas religiões. Eles se aproximam de nossas teorias apenas depois que suas religiões já se foram, e eles vêm até nós para uma fundamentação mais profunda e uniforme de seus pontos de vista. A religião não desaparece por propagarmos as teorias do materialismo, mas porque se debilita por simples amostras coletadas no campo da economia por uma cuidadosa observação do mundo atual.

Ao declarar que a religião é um assunto privado não queremos dizer que são irrelevantes para nós quais concepções gerais nossos membros possuem. Preferimos um completo entendimento científico a uma fé religiosa não científica. Mas estamos convencidos de que as novas condições irão por si mesmas alterar as concepções religiosas e que a propaganda, religiosa ou antirreligiosa, é incapaz de conquistar ou evitar isso.

Aqui está o ponto crucial da diferença entre nossa concepção e todas as anteriores, entre o atual movimento proletário e os movimentos de classe anteriores. Nossa teoria materialista nos revelou os fundamentos reais das lutas históricas passadas. Demonstrou que sempre foi uma questão de lutas de classes e interesses de classes cujos objetivos eram a transformação das condições econômicas. As pessoas não estavam claramente cientes das razões materiais de suas lutas. Suas concepções e objetivos eram encobertos por um véu místico de verdades eternas e fins sagrados e infinitos. Portanto, suas lutas eram conduzidas enquanto disputas entre ideias, pela verdade divina em cumprimento da vontade de Deus. As lutas assumiram a forma de guerras religiosas. Depois, quando a religião já não ocupava o primeiro lugar, quando a burguesia, fantasiando que poderia alcançar o mundo inteiro pela razão, lutou contra os representantes da igreja e da nobreza, essa burguesia imaginou estar empreendendo uma batalha pela racionalidade definitiva, pela justiça eterna baseada na razão. Naquele período a burguesia defendia o materialismo. Mas entendeu muito pouco da real natureza da luta e a conduziu nessa mistificação jurídica apresentando-a, aqui e acolá, como uma batalha contra a religião. Não viu que essa luta era somente uma luta de classe da burguesia contra as classes feudais cujo objetivo era instaurar o modo de produção capitalista.

A esse respeito nossa luta de classe é diferente de todas as anteriores, em virtude de nossa ciência materialista nós a reconhecemos exatamente como é, a saber, uma luta pela transformação econômica da sociedade. Embora percebamos a elevada importância dessa luta e expressemos frequentemente em nossos escritos que trará liberdade e fraternidade para a humanidade, tornará reais os ideais cristãos de amor humano e emancipará o pensamento humano da opressão da superstição, não obstante nós não apresentemos esta luta como uma luta ética por um ideal moral, tampouco como luta jurídica por liberdade e justiça absolutas, e nem como luta subjetiva contra a superstição. Sabemos que, na realidade, se trava uma luta pela revolução do modo de produção, pelas demandas da produção, e todas as outras coisas são resultados que emanam dessa base.

Essa compreensão clara da real natureza de nossa luta se expressa na declaração de que religião é um assunto privado. Não existe contradição entre nossa teoria materialista e essa reivindicação prática. Elas não representam dois pontos de vista antagônicos que devem ser conciliados no sentido de que “questões práticas” devem ser conciliadas com a “solidez dos princípios teóricos”. Não, assim como nossas denominadas questões práticas sempre resultam de uma clara compreensão teórica, também o são aqui, como as posições expostas acima demonstram. Portanto, a declaração de que a religião é um assunto privado expressa a clareza da natureza científica e do objetivo de nossa luta, uma consequência necessária de nossa teoria materialista da história e apenas nosso materialismo é apto a dar uma justificação científica dessa reivindicação.


[1] NT: Quando este texto foi escrito (1907) a social-democracia era a única corrente política marxista. Após 1914, quando ela se tornou antimarxista na prática e paulatinamente foi abandonando o materialismo-histórico-dialético como referência, este combate ficou restrito às alas conservadoras das religiões. Exatamente por sua evolução antimarxista, em alguns países alas progressistas das religiões ajudaram a fundar partidos sociais-democratas. Para os religiosos progressistas, a social-democracia resolvia uma contradição ao permitir uma atuação política que fosse, ao mesmo tempo, de esquerda e anticomunista.

[2] NT: Do original “Kaffir”. Até a década de 1950 era usado de forma neutra na África do Sul para se referir aos africanos negros, mais especificamente ao povo Nguni. Com o início do Apartheid começou a ser utilizado de forma ofensiva pelos brancos racistas. Atualmente é considerada a expressão racista mais ofensiva pela sociedade sul-africana.

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