Sobre a chegada de haitianos ao Brasil

Foto por Thomas Hackl
Auto-organização, Mundo

Sobre a chegada de haitianos ao Brasil

Se fosse possível resumir a história da humanidade em algumas afirmações, uma delas seria a de que nossa História é a história dos movimentos das populações – quer seja em busca de melhores lugares e condições para suas vidas ou forçadas por contingências conjunturais. Essa afirmação nos é útil hoje para entender o porquê ainda há grandes deslocamentos populacionais fugindo da miséria e de perseguições religiosas. A partir do século XV europeus de diversas regiões e Estados Nacionais se aventuraram em busca de novas terras e melhores condições de vida. Também se deslocaram pelo oceano um imenso contingente de milhares de africanos, capturados para o comércio e trabalho escravo nas colônias europeias da América. Já nos séculos XIX e XX alemães, italianos, irlandeses, polacos, japoneses e outros povos vieram para a América.

O Brasil, que durante séculos recebeu milhares de imigrantes europeus, nas últimas décadas passou a ser também exportador de força de trabalho. Hoje, o Ministério das Relações Exteriores estima que há cerca de 2,5 milhões de brasileiros morando – e trabalhando – fora do país.

Paralelamente, o desenvolvimento de sua condição imperialista levou o Brasil a receber novas levas de estrangeiros em busca de melhores condições de vida e trabalho. As solicitações de visto de permanência dobraram de 15 mil em 2010 para 30 mil em 2014. No entanto, origem dos trabalhadores que solicitam o visto de permanência não é mais a mesma. Hoje os trabalhadores em sua maioria são africanos; asiáticos e latino americanos, com destaque para os haitianos.

O Haiti é provavelmente a origem da maioria dos novos imigrantes no Brasil. Cerca de 130 mil haitianos desembarcaram no país, legal ou ilegalmente. A maioria deste contingente chega ao Brasil pela fronteira com o Peru e se instala precariamente nas áreas fronteiriças dos estados do Acre, Amazonas e Pará. Muitos haitianos pagam a atravessadores, os coiotes, para chegarem até o Brasil, da mesma forma que diversos brasileiros e latinos fazem para chegarem aos EUA ou Europa.

Em regra, esses novos imigrantes vêm para o Brasil ocupar postos de trabalho em cargos de menor remuneração e qualificação. Para os capitalistas, incluindo o Estado, é mais lucrativo empregar de forma precarizada, preferencialmente por fora da legislação trabalhista. O Haiti foi o primeiro país do continente americano a abolir a escravatura. Por meio da luta armada, iniciou-se o processo de expulsão dos colonizadores franceses, ingleses e espanhóis em 1791, obtendo a extinção da escravidão em 1794 e independência da França em 1804. Uma vez república, a exploração das massas continuou sob novas formas.

A classe dominante haitiana – conhecida como “elite mulata” – subserviente aos EUA, manteve sozinha sua dominação até 1915, quando precisou da ajuda estadunidense para continuar no poder. A invasão dos EUA continuou até 1934, porque só a repressão intensa poderia conter as revoltas da população. Mesmo depois de retirar-se do país, os EUA continuaram tutelando os governos ditatoriais haitianos. A classe dominante dividia-se em duas frações: a moderna, cosmopolita e privilegiada pela intervenção estadunidense, e a atrasada, agrária, prejudicada pela insipiente modernização econômica trazida pelos EUA. Da segunda surge um movimento de resistência nacionalista xenófobo constituindo milícias, os tonton macoutes, que em 1957 colocam no poder François Duvalier – o Papa Doc – que dirigiu o país por quatorze anos de forma brutal. Com a morte de Papa Doc em 1971, seu filho Jean Claude Duvalier – o Baby Doc – continuou a ditadura por mais quinze anos. Apenas em 1986 a população organizada derrubou Baby Doc. No entanto, em seu lugar tomou o poder uma junta militar que lhe era favorável.

Nos anos 90 turbulências econômicas e a deposição de vários governos, arrasam a economia e aprofundam a miséria da população haitiana. Em 2004 a ONU interviu no Haiti em missão liderada pelo Brasil (governo Lula) sob o pretexto de estabilizar e manter a ordem no país e – como já comprovado por tantas outras “missões humanitárias” da ONU– tudo não passou de justificativa ideológica das potencias do “mundo livre” para perpetuar a submissão da população do Haiti às mesmas forças políticas e econômicas que o tornaram um dos países mais pobres do planeta. Para completar a tragédia da primeira nação independente da América Latina, em 2010 um terremoto destruiu o que restava da frágil infraestrutura do país, matando 100.000 pessoas.

Assim, compreende-se porque um número tão grande do proletariado no Haiti é levado a emigrar. Países com grande fluxo migratório sofrem em função de crises econômicas, guerras e desastres naturais que não deixam outra opção a boa parte de suas populações do que tentar viver em outro lugar.

Dessa forma, são fortes os motivos para se combater preconceitos ou sentimentos de ódio contra trabalhadores imigrantes, haitianos ou de qualquer lugar. Se o Brasil foi o último país da América a abolir a escravidão e o Haiti foi o primeiro, temos muito a aprender com sua história de lutas e enxergar os haitianos que estão aqui no Brasil como parte do proletariado mundial, forçados a sair de sua terra de origem para sobreviver devido ao irracional sistema em que vivemos, no qual a manutenção dos poderes instituídos e o lucro acima de tudo são a verdadeira religião contemporânea.