O que realmente importa

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O que realmente importa

Por Fagner Enrique (Passa Palavra)
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Num momento inteiramente crucial, marcado pela maior crise econômica vivida pelo Brasil em muitas décadas, grande parte da extrema-esquerda deixa de lado a luta de classes e revela uma vocação governista e alarmista.

Aquilo com que a esquerda não governista deve se preocupar realmente é deixar de lado toda a polêmica atual sobre o impeachment, deixar de lado as manifestações da direita, deixar que a esquerda governista e a direita disputem o poder, deixar de lado as disputas intercapitalistas e voltar a valorizar sobretudo as lutas envolvendo as relações de trabalho, porque se o comunismo será alguma coisa será a transformação radical das relações de trabalho. Somente assim poderá a esquerda recuperar o prestígio social que o PT, colaborando com movimentos e organizações governistas e afins, foram desconstruindo paulatinamente.

Bastaram aproximadamente dez anos de governos petistas para que a esquerda se encontrasse completamente desmoralizada e completamente na defensiva. A direção e o envolvimento do PT em esquemas de corrupção desmoralizaram toda a esquerda; e a repressão à extrema-esquerda, contando com a participação do PT e coincidindo com a explosão das manifestações de direita, criou condições para que toda a esquerda ficasse na defensiva. É esse o partido que agora, supostamente em nome da democracia, olha para os de baixo e pede apoio, ao mesmo tempo em que a presidente assegura que firmará um novo e amplo pacto com os de cima se a tentativa de impeachment for vencida.

Num momento inteiramente crucial, marcado pela maior crise econômica vivida pelo Brasil em muitas décadas, grande parte da extrema-esquerda deixa de lado a luta de classes e revela uma vocação governista e alarmista: faz conhecer aos quatro ventos sua gratidão e lealdade aos governos petistas, por conta dos programas sociais que beneficiaram efetivamente milhões de brasileiros pobres, e concebe a derrubada do governo como um retrocesso em termos de democracia e políticas sociais; e celebra também a disposição dos governos petistas para o diálogo com os movimentos. É sabido que esses dois elementos – políticas sociais e diálogo com os movimentos – estão associados ao formidável desenvolvimento capitalista da Era PT. Mesmo representando avanços, tais elementos nos levam sempre de volta à questão crucial: a da revolução contra o capitalismo.

O que precisamos agora realmente é de pessoas de esquerda que, sobretudo nos seus locais de trabalho, onde as classes sociais se definem e desenvolvem relações de contradição e antagonismo, reencontrem a realidade inexorável da luta contra o capital, que é o enfrentamento aos patrões. É a partir daí que se deve conceber uma agenda à parte, rompendo completamente com a agenda das classes dominantes, para a esquerda. É a partir daí que qualquer síntese programática e estratégica deve ser concebida. Assumir o enfrentamento ao capitalismo é trilhar um caminho à parte dos que saem às ruas para defender a permanência do governo ou lançar a palavra de ordem do “Fora Todos”. A esquerda deve se interessar pelo desenvolvimento de uma cultura de enfrentamento à exploração, e de solidariedade e ajuda mútua frente à perseguição imposta pelo patronato aos que não têm alternativa senão lutar. Isso deve ser uma prioridade, sobretudo diante dos efeitos nefastos da crise econômica sobre as condições de vida dos trabalhadores.

Trilhar um caminho à parte não é o mesmo que estabelecer novas facções à esquerda. Pensar ser esta a oportunidade perfeita para que dissidentes daqui e dali se reúnam e criem novas organizações, portadoras de uma linha política “correta”, para a partir daí sair a contagiar as massas proletárias, não corresponde exatamente a estimular o enfrentamento coletivo concreto ao capital. O que se propõe aqui é que as organizações estejam desde o começo intimamente relacionadas a uma cultura de resistência e solidariedade. Não precisamos de organizações artificiais: precisamos de organizações geradas ou absorvidas pelo processo de luta, que o potencializem por dentro.

As organizações de antemão artificiais ou que se artificializam com o tempo contribuem para a ritualização do processo de luta, separando a militância da vida cotidiana. É por isso que a realidade da esquerda contemporânea é a completa ou quase completa subordinação nos locais de trabalho e em outras situações, “compensada” pela participação mais ou menos frequente em reuniões, manifestações de rua e coisas do tipo. Pelo contrário, é preciso estimular a retomada da luta de classes – dando o exemplo na prática, no cotidiano – nos locais de trabalho e onde mais houver oportunidade. E isso deve ser feito relevando os possíveis efeitos das disputas intercapitalistas, pelo menos na medida em que não há qualquer indício de uma possível supressão da democracia, isto é, na medida em que a derrubada ou não da presidente, golpista ou não, não representa um contexto radicalmente favorável ou desfavorável para a luta.

Também se deve levar em conta outra coisa. Lutas nos locais de trabalho – e outras lutas mais – sempre existiram e sempre existirão, pois resultam dos ataques desferidos pelas classes dominantes. A questão é saber se a esquerda está interessada em estimulá-las e elevá-las a patamares sempre superiores ou se está mais interessada nos possíveis desfechos das disputas entre as classes dominantes, pretendendo somar-se a um dos lados em contenda, aquele que se considera melhor ou “menos pior” que o outro. Nesse sentido, o que a esquerda precisa fazer não é gerar lutas nos locais de trabalho e em outros locais, mas redescobri-las e voltar a lhes dar valor, associar-se intimamente a elas. No fundo, a questão é que deveria ser a esquerda a constituir o ponto de ligação entre lutas anteriores e novas lutas.

Não adianta protestar contra o capitalismo e o Estado nas ruas se não se protesta contra o capitalismo e o Estado nas relações cotidianas. E aí está o desafio mais importante que o capitalismo nos impõe agora: a completa adaptação do capitalismo e do Estado às manifestações de rua, às acampadas, às ocupações etc. Enquanto o radicalismo se restringe às ruas e aos corredores escolares e universitários, por exemplo, mas não se manifesta também principalmente nas relações de trabalho, as relações de produção permanecem intocáveis.

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