Parte I: Como Interpretamos Marx e a Teoria que nos Legou
Para nós, o marxismo é uma teoria e Marx foi um militante comunista que deu forma teórica ao movimento do proletariado revolucionário em seu tempo. O chamado “Movimento Operário e Socialista” que nasceu na primeira metade do século dezenove e existiu até o entre guerras mundiais, produziu apenas duas teorias: anarquismo e marxismo. Nessa ordem. A primeira delas – embora ainda hoje possua validade parcial por algumas sólidas verdades que contém – foi substituída pela segunda pela classe proletária em luta por ser mais completa, conter menos insuficiências, portanto servir como uma ferramenta melhor para a luta por sua emancipação. Por razões diferentes, o proletariado revolucionário abandonou a ambas. A teoria anarquista por suas lacunas e a teoria marxista por ter se transformado, majoritária e esmagadoramente, em mais uma ideologia: especificamente na ideologia do capitalismo de Estado.
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Os escritos de Marx podem ser interpretados de incontáveis maneiras. Isto significa que, para nós, não existe uma interpretação “correta” ou “autorizada” de Marx. Como marxistas, nos esforçamos por aplicar o método do materialismo histórico e dialético de Marx e Dietzgen ao próprio marxismo e, com base nisso, estabelecer critérios e fazer demarcações para nos posicionar e agir.
Assim, nesta questão, demarcamos primeiramente contra intepretações que desconsideram o caráter militante e comunista da pessoa e da obra de Marx, ou seja, interpretam Marx por suas contribuições a ramos do conhecimento – sociologia, filosofia, história, economia, matemática, jornalismo. Por considerarmos este um procedimento acadêmico, não o adotamos como critério.
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As críticas pontuais que fazemos às contradições de Marx e de aspectos de sua obra – neutralidade da tecnologia, alianças com forças políticas estranhas ao proletariado para “forçar” saltos históricos impossíveis, antieslavismo, resquícios de estatismo e nacionalismo, e preponderância da geopolítica sobre as classes socais em certas analises são alguns exemplos – se situam no interior do marxismo, ou seja, humildemente procuramos criticar e, assim fazendo, desenvolver e incorporar à teoria que nos orienta elementos ausentes da realidade que o circundava quando elaborou os seus escritos. Ademais, mesmo contrários ao ecletismo por seu caráter nocivo, consideramos que não existe uma teoria completa ou acabada, portanto, com a teoria marxista não é diferente e toda teoria sempre demandará por novos desenvolvimentos.
Daí derivamos um segundo critério: não consideramos válidas as críticas a Marx e ao marxismo que expressam a perspectiva de outras classes sociais que não o proletariado. Consideramos importante conhecê-las para melhor combatê-las. Isto significa que superar Marx não se confunde com negar Marx e tal superação, quando acontecer, não será obra de nenhuma organização, corrente política ou indivíduo, mas da classe proletária em movimento ativo pelo comunismo.
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Entre as muitas críticas anticomunistas a Marx e sua obra, citaremos apenas duas que ganharam eco ao longo dos anos como expressão de um esforço permanente para tentar sepultar suas ideias e impedir que o proletariado as conheça e possa tomá-las como referência.
A primeira é a distorção de rotular o pensamento de Marx como portador de um estéril e incorrigível determinismo econômico. Como se Marx não fosse um dialético que expôs claramente que materialidade e subjetividade se interpenetram e não podem ser consideradas isoladas uma da outra.
A segunda está em fazer zombaria de suas análises e “previsões” que estariam grosseiramente equivocadas. Aqui basta dizer que Marx, nos cenários analíticos que construía, indicava tendências – algo qualitativamente diferente de previsão – e que, do balanço de todas as tendências que identificou se contam mais acertos que erros.
Não se encontra na teoria de Marx nenhuma confusão entre propriedade privada de meios de produção (terras, fábricas, equipamentos e instrumentos de produção) e propriedade privada de bens fruto de trabalho individual. Portanto, trata-se de uma deformação tosca imputar a Marx a pretensão de eliminar toda forma de propriedade pessoal.
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Diferentemente da maioria dos teóricos anarquistas, que adotaram como ponto de partida os desejos subjetivos de emancipação das classes dominadas e dos revolucionários utópicos, que partiram da suas próprias cabeças para formularem teorias de transformação social – ambas manifestações de idealismo -, Marx partiu das condições materiais em que se produz a vida na sociedade de seu (nosso) tempo. Fez mais, comparou a sociedade capitalista com as que a antecederam e concluiu que uma sociedade superior ao capitalismo – que ele denominou comunista e não socialista – somente poderá nascer dela. Ou seja, não é possível se chegar ao comunismo sem passar pelo capitalismo.
Marx se referia que o comunismo é impossível se não se resolvem as tarefas históricas da revolução burguesa: culturalmente erradicando o analfabetismo, politicamente eliminando regimes políticos hereditários, economicamente elevando o nível das forças produtivas. Nada disso tem a ver com etapismo ou evolucionismo que, em termos políticos, significa colocar comunistas para desenvolver capitalismo ou formar frentes progressistas com seus inimigos de classe. Se as tarefas capitalistas não estão realizadas cabe ao proletariado com consciência de classe comunista se “limitar” a fazer lutas sociais com autonomia e independência de burgueses e gestores. Porém, este “limite” tem a capacidade de moldar os rumos do desenvolvimento capitalista.
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Entre as tendências que Marx identificou com exatidão está a de ter apontado que o capitalismo fomentaria a mundialização, que hoje alguns chamam ideologicamente de “globalização”, ou seja, sua teoria permitiu vislumbrar a criação de um mercado mundial no qual os países se tornariam cada vez mais interdependentes.
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Devemos a Marx o desvendar da dinâmica de funcionamento do capitalismo que avança ao inventar novas e alternativas formas de produção que afetam a forma como vive a humanidade por meio da tecnologia, contrariamente às sociedades que o antecederam que apresentaram a tendência de conservar tradições e modos de vida. E isso em um ritmo cada vez mais rápido. As mercadorias e produtos antigos estão constantemente dando lugar a novos, bem como quem as fabrica. Essa última característica provoca constantes remodelações no proletariado.
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Com clareza lapidar, Marx antecipou que as sociedades capitalistas engendrariam empresas poderosas, concentrações crescentes de riqueza e novos métodos de produção que tornam cada vez mais difícil para camadas médias e profissionais liberais manterem suas condições de vida. O desparecimento desses setores, extratos e camadas se dá tanto por terem suas habilidades tornadas obsoletas quanto por se proletarizarem, vendendo sua força de trabalho com os saberes adquiridos para empresas que os retiraram do mercado.
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A humanidade deve a Marx a demonstração de que o trabalho sob a forma histórica capitalista rompe com a tendencia de conexão dos seres humanos com os objetos que fabricam ou criam, denominado por ele de “objetivação do trabalho”, afirmando que as pessoas colocam algo de si em seus trabalhos. Essa ruptura entre criador e criação recebeu o conceito de “trabalho alienado”. E afirmou como era, e continua sendo, vital superar essa forma de trabalho. Para tanto, esboçou um roteiro inicial para que a sociedade pudesse funcionar de um jeito tal que cada pessoa pudesse ter o máximo de tempo livre com abundância material para todos em todo o planeta de modo a que pudessem desenvolver todas as suas capacidades, habilidades e talentos. Esta síntese define o que é a sociedade comunista pela qual lutamos.
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Concebemos que o marxismo não é uma teoria atemporal. E constitui uma ideologia sustentar que Marx descobriu leis gerais de mudança social, válidas para todas as sociedades humanas. Para nós, mesmo as proposições gerais da teoria de Marx são específicas. Isto significa que não existem no marxismo princípios suprahistóricos e quando trata as diferentes áreas – política, economia e cultura por exemplo – as aborda na perspectiva de descrever em detalhes as relações entre simultâneos/sucessivos fenômenos e a conexão existente entre eles e os fenômenos econômicos estabelecidos em um determinado momento histórico de desenvolvimento.
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A teoria marxista contém negatividade (crítica e destruição), positividade (afirmação e construção) e não constitui um mero sistema científico sem vínculos com objetivos comunistas e práticos como se fosse uma espécie de inútil “teoria das leis do devir social”. Contudo, a parte positiva do marxismo está inteiramente reservada para a sociedade comunista de um futuro que até agora não chegou, isto é, ser marxista no capitalismo é criticar em teoria e atos a sociedade em que vivemos.
Por se tratar de uma teoria revolucionária em conteúdo e método, qualquer tentativa de usar o marxismo para legitimar governos, Estados, regimes políticos, partidos ou indivíduos no capitalismo constitui, para nós, em operação ideológica que visa ocultar a continuidade da exploração sob alguma forma. Exemplos didáticos e que custaram as vidas de milhares de comunistas proletários são as ideologias da “transição ao socialismo”, da “construção do socialismo” e do “Estado operário”.
Para realizar a crítica materialista do existente é preciso, pelo lado do objeto (materialidade), pesquisar empiricamente o conjunto de suas relações e desenvolvimentos, e pelo lado do sujeito (subjetividade) registrar as maneiras como é possível realizar a fusão entre teoria e prática (práxis) revolucionária, convertendo em poder de classe ativo e eficaz o conjunto de impotências, percepções e demandas do proletariado.
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Quando Marx estudou a sociedade capitalista, não o fez pelo aspecto da positividade. Pelo contrário, buscou explicar os elementos regressistas, apontar tendências para sua superação revolucionária e demonstrar as possiblidades de conduzir esta sociedade à destruição sem abandonar a perspectiva de seus objetivos práticos.
O marxismo não pretende se colocar como um sistema de conhecimento unificado, ou seja, não aborda tudo. Existem materialidades e subjetividades que não interessam ao marxismo e, mesmo entre aquelas que interessam a esta teoria como objeto de estudo, existem prioridades.
A prioridade do marxismo é pelos fenômenos e interrelações da vida histórica e social, logo existe uma primazia sociológica e não se deve estender a teoria marxista, por exemplo, ao campo das ciências naturais.
Dentro da preponderância sociológica do marxismo possuem preferência: a) em âmbito estrutural, localizar as assimetrias, lacunas, insuficiências e contradições do capitalismo; b) o estudo das crises enquanto elemento normal do funcionamento capitalista, também no âmbito de sua estrutura; c) em âmbito superestrutural, detectar pontos de debilidade, de rachaduras e brechas. Todos estes estudos orientados pela teoria marxista objetivam revelar ao proletariado em que aspectos sua ação prática pode incidir para engendrar a quebra da ordem social.
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O sentido fundamental do marxismo não é promover nenhum tipo de contemplação do mundo existente, mas transformá-lo ativamente. Concebemos que um marxista subordina os conhecimentos teóricos aos fins da ação revolucionária. Nessa concepção, cabe aos marxistas de hoje dar forma e expressão às elaborações de Marx de modo a ampliar e fornecer conteúdos contemporâneos à luta revolucionária do proletariado.
Em suma, para nós o marxismo é uma teoria cujo único sentido em se valer dela é a partir de uma atitude prática militante pela revolução proletária e enquanto a mais-valia servir para explicar o capitalismo, Marx seguirá incontornável.
Parte II: Correntes Políticas Marxistas
Preliminarmente, deve-se demarcar que não partilhamos da confusão oriunda da academia que confunde corrente política com corrente intelectual. Enquanto a segunda fica no plano das ideias, a primeira exige que as ideias tenham ido à prática e reunido alguma influência de massas. Além disso, diferenças de ênfases ou graus são insuficientes para justificar uma corrente política com especificidade, ou seja, é preciso possuir diferenças qualitativas em relação a outras que justifiquem sua existência independente. Conforme estes três critérios, até os dias de hoje com base no marxismo se originaram apenas sete correntes políticas. A seguir, resumidamente e por ordem de aparecimento da mais velha para a mais recente, exporemos como nossa concepção entende cada uma delas.
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A primeira corrente política orientada pela teoria marxista foi a Social-Democracia. Surgida na segunda metade do século 19, fruto da fusão de marxistas com lassaleanos. Politicamente, esse semimarxismo demonstrou todo o seu potencial reacionário em 1914 quando a maioria desta corrente aderiu ao massacre de proletários na I Guerra Mundial. Formalmente, durou até 1951 quando deliberou em congresso que a teoria marxista era comparável a teorias humanistas ou religiosas e se assumiu como uma variante de esquerda do liberalismo, ideologicamente mantendo a denominação de socialista.
Entre suas características principais situamos a de conceber o socialismo como resultado de uma evolução, não revolucionária, e pacífica do capitalismo a partir da adoção de sucessivas reformas. Suas ações são baseadas na ação parlamentar e na pressão sobre as instituições do Estado capitalista. No plano organizativo, adota formas que separam institucionalmente luta política (partidos de massas) de luta econômica (sindicatos). Possui como objetivo maior integrar o proletariado na ordem capitalista.
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A segunda corrente política orientada pela teoria marxista foi o Bolchevismo. Até 1917, era uma corrente interna da social-democracia russa. Após 1917 ganhou influência mundial. Possui como características principais conceber o socialismo como transição entre o capitalismo e o comunismo sob a forma de Capitalismo de Estado, adotar formas de ação parlamentar e extraparlamentar ambas dirigidas para a conquista do poder político entendido como Ditadura do Proletariado exercida pelos intelectuais em nome do proletariado, sua forma de organização política fundamental é o partido político com centralização de tipo militar apoiado em revolucionários profissionais. Objetiva reunir interesses antagônicos de gestores, [1] proletários e camponeses para uma sublevação contra formas sociais pré-capitalistas.
O principal militante e teórico dessa corrente, Lênin, adaptou o marxismo às condições de atraso do capitalismo na Rússia operando a fusão entre a teoria de Marx com as concepções da corrente que expressou a pequena burguesia radicalizada na Revolução Francesa. Essa mescla de marxismo e jacobinismo foi definida pelo próprio Lênin ao afirmar que o social-democrata – marxista até 1914 – era um “jacobino ligado às massas”.
Do marxismo incorporou a dialética do movimento das classes sociais, mantendo os conceitos de Marx mas alterando seu conteúdo.
Da corrente jacobina Lênin incorporou a concepção política de conquista do poder pela organização de revolucionários e não pela organização da totalidade da classe. Essa tática de luta pela conquista do poder de Estado Capitalista trouxe acoplada a ela várias práticas burguesas: mobilização de todos os meios e forças da sociedade aptos para derrotar adversários, aplicação de todos os métodos que – pretensamente – prometam levar à vitória, utilitarismo extremo expresso em compromissos com qualquer força social que possa ser usada ainda que brevemente e com importância secundária.
Esse conjunto de conteúdos e práticas herdados da burguesia, produziu uma aplicação do princípio “os fins justificam os meios” como se qualquer meio fosse compatível com finalidades revolucionárias, bastando lançar mão deles.
No plano organizativo, ao criar uma organização estrita de revolucionários profissionais, possibilitou que essa organização, uma vez no Estado, se tornasse uma instituição de controle de todas as outras instituições, dado que, por ser uma organização de dirigentes, apresentava as condições para ser a forma institucional de cúpulas onipotentes.
No plano filosófico, se limitou ao materialismo burguês que considera a práxis política como emanação da ação de dirigentes. Assim se explica o culto à personalidade de Lênin e outros em todas as correntes derivadas do bolchevismo (Stálin, Trotsky, Mao, Gramsci) e a interpretação da política de seus adversários reformistas como “traições”.
No plano tático-metodológico, expressou vários aspectos da política da burguesia quando era uma classe revolucionária. Exemplos: a) fazer qualquer tipo de agitação de ideias entre as massas com objetivo de trazê-las para sua política, mesmo quando essas ideias sejam opostas ao programa do partido; b) produzir constantes flutuações e ajustes temporários na tática apenas para adequá-la a situações momentâneas da correlação de forças entre as classes; c) revisão da tática em questões aparentemente fundamentais somente para alcançar a subordinação incondicional das massas; d) desconsideração absoluta dos efeitos na subjetividade das massas de tais métodos; e) uso de funcionários do partido para “traduzir” para as massas essas constantes reviravoltas, manobras e guinadas; f) necessidade de disciplina absoluta como único meio para conciliar interesses contraditórios de classes antagônicas que a integram (gestores, camponeses e proletários).
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A terceira corrente política orientada pela teoria marxista foi o Comunismo de Conselhos. Aparece com um corpo próprio de concepções sistematizadas em 1920 quando Pannekoek deu forma teórica aos acúmulos práticos e às posições das esquerdas comunistas alemã, holandesa e britânica, e escreveu a proposta de tese-base para o II Congresso da III Internacional intitulada “Revolução Mundial e Tática Comunista”. Rejeitada pelos bolcheviques, foi substituída por outra assinada por Lênin, que foram publicadas sob o título de “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”.
De 1920 a 1924, seu momento de maior força, esta corrente organizou clandestinamente mais de 300.000 operários somente na Alemanha, dada a perseguição da social-democracia que ocupava o governo daquele país à época. Na Bulgária o Comunismo de Conselhos também conseguiu algum peso de massas além de núcleos minoritários na Áustria, Holanda, Inglaterra, Escócia e, posteriormente, também nos EUA.
As principais características dessa corrente derivam de sua concepção de que o comunismo é fruto da ação consciente do conjunto do proletariado tomando para si as tarefas que lhe interessam sem confiar a representantes. Ao adotar este ponto de partida prático, seus militantes conseguiram dar forma teórica a um conjunto de concepções que abrem as possiblidades para superar na prática e na teoria várias questões fundamentais para a luta revolucionária do proletariado comunista.
No plano institucional, resolveu o problema da cisão entre partido e sindicato ao estabelecer apenas dois tipos de organizações: aquelas para a totalidade do proletariado e aquelas para suas minorias comunistas. Assim, conseguiu desmascarar a ideologia da “vanguarda dirigente” e demonstrar o caráter anticomunista da forma “partido de massas” além de rejeitar a concepção de “partido de quadros” enquanto partidos de dirigentes aptos a exercer qualquer ditadura de partido sobre a classe proletária após a tomada do poder e deste mesmo tipo de partido sobre o Sistema de Conselhos Proletários (SCP), desmascarando assim a ideologia da “correia de transmissão”.
No plano organizativo, rompeu com o modelo federativo-nacionalista de partidos de massas da II e III Internacionais afirmando na prática a concepção de uma organização internacional de proletários com consciência comunista cuja função seria a de catalisador da consciência de classe e sua estrutura a de um núcleo para selecionar minorias revolucionárias do proletariado e não para reagrupar grandes massas.
No plano da ação política, adotou a greve de massas – também conhecida como greve selvagem -, como meio de luta inserida em uma estratégia antiestatal com táticas antiparlamentares e antissindicais. Enquanto teve forças essa corrente lutou diretamente pela revolução nos países industrializados contra o Estado e seu sistema de partidos políticos estatizados.
No plano teórico, desmascarou a ideologia da transição e a necessidade de um Estado durante o período histórico em que algumas regiões do mundo estão sob relações capitalistas e outras sob relações comunistas. Para tanto, identificou no SCP a forma institucional que substituirá o Estado na sociedade comunista não apenas depois da revolução mas desde o processo de luta pela conquista do poder. Desse modo, demonstrou que a Ditadura do Proletariado é uma forma não estatal de poder. E mais, esclareceu o conteúdo do conceito de “duplo poder” ao estabelecer que existe uma contradição antagônica entre Estado capitalista e SCP. Tal esclarecimento possibilitou que esta corrente não incorresse no erro de tornar os Conselhos Proletários um dogma, criando assim mais uma ideologia. Pelo contrário, esta corrente não vacilou em denunciar e abandonar os Conselhos quando a hegemonia social-democrata neles se afirmou e os transformou em instituições de colaboração com parlamentos e executivos por ela governados.
No plano prospectivo, seu esforço por extrair ensinamentos da prática revolucionária das massas proletárias possibilitou encontrar a superação do antagonismo entre centralismo e federalismo, substituindo ambos por uma centralização de baixo para cima na construção da nova sociedade.
No plano mundial, ao defender a unidade do proletariado global por meio da prática de um internacionalismo intransigente, recusou apoiar a Democracia contra o Fascismo e a defender a URSS durante a II Grande Guerra, e depois dela, recusou apoiar nacionalismos periféricos expressos em diversos movimentos de “libertação nacional”. Contra a participação do proletariado em frentes policlassistas defendeu incansavelmente a necessidade de uma “Revolução Proletária Mundial”.
Em 1921 esta corrente fracassou na tentativa de fundar uma IV Internacional. Entre seus teóricos militantes destacaram-se os holandeses Anton Pannekoek e Hermann Gorter, a holandesa Henriette Roland-Holst e os alemães Karl Korsch, Otto Ruhle e Paul Mattick.
A partir da década de 1930 a evolução histórica dessa corrente deu origem à variante interna do Conselhismo, que se diferenciou do Comunismo de Conselhos original principalmente por apresentar frouxidão organizativa, pela negação da necessidade de partido e por definir o caráter da Revolução na Rússia como burguês.
Esmagada pela repressão generalizada que sofreu dos Estados administrados pela social-democracia, bolchevismo e fascismo, esta corrente desapareceu durante a II Guerra Mundial. Contudo, a força de suas concepções e postulados fizeram com que, durante e após os processos de luta ocorridos entre a segunda metade da década de 1960 e primeira metade da década de 1970, houvesse uma procura internacional por conhecer e praticar as concepções dessa corrente. Desde então, formaram-se pequenos agrupamentos pelo mundo que se inspiram no Comunismo de Conselhos não para ressuscitá-lo, algo impossível e dogmático, mas para recolocar o proletariado revolucionário na cena pública da política sob novas condições e contextos.
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Após a morte de Lênin em 1924, fruto da luta interna havida no interior do Estado e do aparelho do partido bolchevique russos, o bolchevismo original se dividiu e deu origem à quarta e quinta correntes políticas marxistas, ao mesmo tempo irmãs e rivais: Marxismo-leninismo e Trotskismo. A primeira também pode ser chamada de stalinismo, marxismo ortodoxo oficial ou bolchevismo oficial, enquanto a segunda pode ser chamada de marxismo ortodoxo de oposição ou bolchevismo de oposição.
O Marxismo-leninismo aprofunda e desenvolve a concepção bolchevique de socialismo como um capitalismo organizado pelo Estado. Limita o pensamento de Marx e a sua teoria à mera divulgação e busca manipulá-lo para justificar de forma imediata medidas práticas, apresentadas como sendo decorrência direta e necessária da própria doutrina marxista-leninista. Fora da URSS isto serviu para transformar as teorias de Marx e Lênin em um amontoado de frases e citações descontextualizadas, que a todas as situações e a tudo respondiam como verdades eternas e absolutas, castrando desse modo qualquer possibilidade de desenvolvimento teórico posterior pelas novas gerações de comunistas e retirando dos clássicos seu caráter revolucionário.
No plano militar, defendeu a posição de criar um exército vermelho permanente, estavelmente hierarquizado, autorreproduzido e independente das massas proletárias. Esta foi a primeira manifestação de degeneração da revolução na Rússia e fora da URSS isto levou a uma concepção militarista de culto às forças armadas burguesas com apoio a propostas como serviço militar obrigatório, defesa da corrida armamentista disfarçada de soberania nacional, bajulação de militares “nacionalistas”, disseminando ilusões sobre as possibilidades de tais figuras impulsionarem transformações no sentido do comunismo.
No plano político, ao exercer o poder de Estado em nome da classe quando ela não mais exercia poder algum fez com que se tentasse abrir uma via ao comunismo por meio da mais indiscriminada repressão, ao mesmo tempo em que se constituía um sistema de compromisso com concessões amplas aos gestores e à pequena burguesia. Fora da URSS, isto evoluiu para a defesa generalizada da fusão do partido (instituição de organização dos comunistas) com o Estado (instituição de opressão e exploração).
No plano organizativo, elevou o partido à condição de único e monolítico, sem espaço para a luta interna, como modelo exclusivo de “transição socialista”. Esta corrente concebe o monolitismo partidário como a subordinação do pensamento à disciplina. O partido stalinista é politicamente restrito às possibilidades de adaptação ao quadro jurídico-político existente em cada momento histórico, significando a primazia da perpetuação da sua presença nos aparatos das instituições do Estado sobre a ligação com a classe proletária.
No plano filosófico, operou a ideologia de transformar a Revolução na Rússia de fenômeno particular em fenômeno geral, o que acarretou a necessidade de “bolchevizar” a III Internacional e matou as potencialidades revolucionárias dos jovens partidos comunistas que renunciaram à revolução em seus países para defender a “pátria do socialismo”.
No plano programático, o partido stalinista é aliancista, voltado para a colaboração entre as classes sociais, significando a primazia no agir político para toda sorte de pactos e frentes em detrimento do que é próprio do proletariado. Seu programa permitiu que esta corrente praticasse o pacifismo e o nacionalismo em nome do marxismo.
O Trotskismo por sua vez denunciou a burocratização da revolução na Rússia e os crimes do stalinismo. Contudo, manteve concepções semelhantes às de Stálin sobre socialismo e ditadura do proletariado e concepções ainda mais antiproletárias que as de Stálin na economia e na organização do processo de trabalho. Em uma conjuntura na qual as tentativas revolucionárias para erigir o proletariado à condição de classe dominante já estavam derrotadas e confirmado o isolamento da Rússia, esta corrente fundou artificialmente uma IV Internacional em 1938 que não cessou de passar por sucessivas cisões desde a morte de Trotsky em 1940.
No plano metodológico, Trotsky distorceu o método das reivindicações transitórias de Marx e Engels. Enquanto estes conceberam as reivindicações transitórias estritamente articuladas umas às outras e condicionaram sua aplicação à vitória da revolução proletária, aquele apresentou um sistema de reivindicações transitórias para o Estado Capitalista desvinculado de uma conjuntura revolucionária, ou seja, sem o proletariado estar na condição de classe dominante. Essa distorção retira toda a validade de tais reivindicações, transformando-as em meras reivindicações jurídicas.
No plano programático, Trotsky considerou ultrapassada e rompeu com a clássica divisão dos programas dos partidos operários em programa máximo (objetivos de longo prazo como conquista do poder e socialização dos meios de produção) e programa mínimo (reivindicações que não questionam a propriedade privada nem o Estado Capitalista como aumento de salários e direito de voto). Em seu lugar propôs as suas reivindicações transitórias (aquelas que, sem serem socialistas, são incompatíveis com a propriedade privada capitalista como redução da jornada sem redução de salários, pleno emprego) por meio de um Programa de Transição que teria a tarefa, segundo ele, de realizar uma “mobilização sistemática das massas para a revolução proletária”. Assim, baseado em um método distorcido, este programa do trotskismo se tornou uma espécie de panaceia a ser agitado em todo momento, lugar e sob o domínio das classes capitalistas.
No plano teórico, Trotsky ao elaborar o conceito de revolução permanente captou corretamente a dinâmica da revolução na Rússia como um mecanismo estritamente social (não econômico) e interno ao processo revolucionário. Contudo, se essa versão inicial de 1905 era efetivamente uma teoria que articulou de modo inteiramente novo a relação entre forças produtivas materiais e relações sociais de produção, pois permitiu conceber uma intervenção direta das relações sociais sobre as forças produtivas, as versões posteriores de 1917 e 1929 – a primeira para incluir o partido e selar o acordo com Lênin que permitiu sua entrada no bolchevismo e a segunda para atribuir a derrota da revolução a causas geoeconômicas e não mais de luta de classes – foram revisadas e modificadas de modo que transformaram a Teoria da Revolução Permanente em ideologia legitimadora da oposição que os trotskistas moviam contra o marxismo-leninismo.
Podem ser creditados ainda ao corpo específico de concepções do trotskismo o desenvolvimento de uma análise própria do fascismo – válida em boa parte -, e a crítica das frentes populares do stalinismo.
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O Maoísmo constitui a sexta corrente política. Designa a linha de ação política do movimento revolucionário comunista chinês liderado por Mao Tsé-Tung (1893-1976) a partir de 1928. Nascido da preocupação dos comunistas chineses em articular a reflexão teórica com a ação prática, o maoísmo deve ser entendido como a expressão do pensamento de Mao Tsé-Tung, tendo como principal objetivo orientar a ação revolucionária.
Coube ao maoísmo atribuir importância às massas camponesas pobres, maioria da população chinesa, acreditando em seu potencial revolucionário. Segundo Mao, os comunistas poderiam romper com as limitações históricas da sociedade chinesa (tradicional, subdesenvolvida e quase que inteiramente subordinada a nações colonizadoras) orientando os camponeses para desempenharem as tarefas revolucionárias. Nesse sentido, as massas rurais chinesas poderiam cumprir com a função histórica que, nas sociedades burguesas, caberia ao proletariado, sem dispensar todos os pressupostos teóricos marxistas e nem mesmo algumas experiências praticadas pelos russos.
No plano organizativo, derivado do bolchevismo stalinista, considera não apenas que o partido comunista é indispensável ao exercício das funções de liderança e vanguarda dirigente do movimento revolucionário, mas vai além das funções clássicas desse partido-Estado ao considerar que, em países subdesenvolvidos como a China, caberia ao partido comunista exercer um papel de conscientização permanente, ou seja, uma função “didática” com objetivo de transmitir as ideias socialistas. Tal processo deveria ser acompanhado de progressiva arregimentação (organização) das massas camponesas.
No plano militar, sustentou que a concretização do processo revolucionário deve se dar pela luta armada. E elaborou uma teoria militar original baseada em guerrilhas camponesas e no cerco das cidades pelo campo, denominada Guerra Popular Prolongada (GPP).
No plano filosófico, desenvolveu a teoria de Marx ao introduzir o conceito de “Revolução Cultural”, significando a necessidade revolucionarizar as subjetividades de modo a provocar mudanças de comportamentos como elemento tão importante quanto as transformações econômicas.
A menção a esses dois importantes desenvolvimentos ao marxismo não impediu o maoísmo de se tornar a ideologia peculiar de uma brutal dominação da classe dos gestores chineses que, ao pretender dar um salto histórico impossível – imputando ao campesinato tarefas que somente o proletariado pode cumprir -, apenas imprimiu a essa corrente uma marca de variante “pedagógica” de bolchevismo para melhor legitimar o capitalismo de Estado chinês.
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O Eurocomunismo constitui a última corrente política que atende aos três critérios que adotamos. Trata-se de um movimento de mudança estratégica e teórica em direção à social-democracia e ao liberalismo iniciado na década de 1970 por vários partidos comunistas de países capitalistas ocidentais, tendo à frente partidos de massa como os PC da Itália, Espanha e França, além de outros partidos menores que reagiram aos efeitos da revelação do Relatório Kruschev no XX Congresso do PC da URSS (PCUS) em 1956 e dos acontecimentos que o cercaram que abalaram os regimes de capitalismo de Estado, a exemplo das revoltas na Hungria, Polonia, Alemanha Oriental e outros países ditos socialistas e as divergências entre os PC da China e da URSS.
No plano programático, essa corrente adotou uma plataforma de reformas democráticas apoiado no sucesso do Estado de Bem Estar Social (welfare state) o qual, por meio de concessões, as classes capitalistas conseguiram reunir os elementos necessários para consolidar uma aliança de classes aparentemente duradoura e estável. Este pacto social permitiu que o proletariado e os gestores sindicais obtivessem resultados sociais satisfatórios nas sociedades nacionais europeias do pós-guerra.
No plano político internacional, o eurocomunismo pretendeu se estabelecer no interior do “campo socialista” como alternativa viável que sobrevivesse ao desgaste imposto pela hegemonia russa frente ao movimento comunista internacional, que já acumulava pesados desgastes para o sistema dos PC stalinistas ligados a Moscou. Além disso, passou a buscar um novo consenso no meio do movimento socialista internacional, rejeitando o exemplo da URSS, principalmente no que diz respeito ao planejamento da vida econômica e à organização política da sociedade.
No plano interno a cada país, sob a avaliação de que o êxito político dos PC’s dependeria, a partir de então, de sua capacidade de atrair novos eleitores além do proletariado. Volta-se então para as camadas médias e passa a realizar todo tipo de alianças com outras forças políticas no âmbito dos respectivos cenários nacionais.
No plano das ideologias, essa corrente foi rica na sua produção. Primeiramente, ao passar a propagar a crença no regime político democrático-representativo republicano parlamentarista, predominante em toda a Europa Ocidental, hegemonizado à época pela social-democracia. Dessa maneira se esforçou para reconstruir uma subjetividade favorável ao capitalismo de Estado, bastante desgastado pela realidade da então URSS, adaptando-o às condições democrático-liberais. Em segundo lugar, parte desse esforço foi o questionamento do conceito caro ao bolchevismo de “vanguarda dirigente” do processo rumo ao que eles entendem por socialismo, formulando o conceito de “policentrismo”. Em terceiro lugar, o eurocomunismo pretendeu legitimar a sua adaptação às mudanças na estrutura social do capitalismo avançado que gradualmente conquistou a subjetividade do proletariado nessa região durante as primeiras décadas após a II Guerra Mundial, reforçando a sua desmobilização de qualquer pretensão de ruptura com o sistema democrático parlamentar.
Em suma, a corrente eurocomunista apenas se diferencia da social-democracia pela origem histórica e, por causa disso, pelo caminho diferente que precisou fazer para chegar a tal semelhança.
Considerações Finais
Seja como teoria, seja como práxis o marxismo ainda ocupa um lugar importante na atualidade. Isto significa que, para nós, merece e precisa ser desenvolvido.
Quanto às correntes políticas que nele se inspiraram, o saldo é bastante negativo. As que sobreviveram ao aniquilamento físico, se integraram na sociedade capitalista como expressões da esquerda do capital em variados graus.
Restam algumas ideias força que podem servir de base para o nascimento de correntes proletárias revolucionárias, sob a condição de serem dialeticamente sintetizadas com desenvolvimentos contemporâneos.
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[1] O tempo de trabalho no processo produtivo e a extração de mais-valia são os critérios que definem as classes sociais no capitalismo. De um lado quem tem o seu tempo de trabalho controlado por outros e de outro quem controla o seu próprio tempo de trabalho e o tempo de trabalho alheio. As pessoas que não controlam o próprio tempo de trabalho e delas se extrai a mais-valia constituem o proletariado. As pessoas que exercem a direção individualizada do processo de trabalho e se apropriam da mais-valia pelo seu direito de propriedade particular constituem a burguesia e as pessoas que controlam os processos de trabalho de maneira coletiva e se apropriam da mais-valia por meio da cooptação no âmbito dos organismos dirigentes constituem os gestores.